Com alguma frequência, o mercado de antecipação de recebíveis tem presenciado prática delitiva resultante da mudança de domicílio bancário pelo cedente, que pelo ardil, pretende obter em duplicidade os valores que sabe não são mais da sua propriedade.
Analisando sob o prisma criminal, o presente estudo pretende mostrar que a conduta parece se amoldar ao tipo do estelionato mediante defraudação de penhor, previsto no art. 171, III do CP, tema de reiterados precedentes.
Veja-se:
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO. ESTELIONATO. DEFRAUDAÇÃO DE PENHOR (ART. 171, § 2º, INCISO III, DO CÓDIGO PENAL). SENTENÇA CONDENATÓRIA. (...) MATERIALIDADE E AUTORIA DELITIVAS COMPROVADAS. PROVA NOS AUTOS DANDO CONTA QUE O APELANTE, MEDIANTE INTENTO FRAUDULENTO, DEFRAUDOU BENS DE SUA POSSE, OS QUAIS FORAM DADOS EM PENHOR COMO GARANTIA NOS CONTRATOS DE CÉDULAS DE CRÉDITO BANCÁRIO FIRMADOS COM A VÍTIMA, (...)
1. "O penhor é um direito real em que a coisa móvel dada em garantia fica sujeita ao cumprimento da obrigação. Uma pessoa, por exemplo, empresta dinheiro a outra, e o devedor entrega joias ao credor como garantia da dívida. O devedor continua sendo dono dos bens, mas eles ficam na posse do credor, de modo que, não havendo pagamento da dívida, as joias serão usadas para tal fim -- serão vendidas pelo credor, por exemplo. Note-se que, tal como mencionado, a regra é que, com a constituição do penhor, o bem móvel passe às mãos do credor. [...] É exatamente nessas hipóteses que pode surgir o crime de defraudação do penhor, isto é, quando o devedor está em poder do bem empenhado e o vende, permuta, doa, ou de alguma outra maneira o inviabiliza como garantia de dívida -- destruindo-o, ocultando-o, inutilizando-o, consumindo-o etc" (GONÇALVES, Victor Eduardo Rios, Direito penal esquematizado - parte especial. 10. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 514/515).
(...)
(TJ-SC - APR: 01459779020148240033 Tribunal de Justiça de Santa Catarina 0145977-90.2014.8.24.0033, Relator: Luiz Neri Oliveira de Souza, Data de Julgamento: 12/08/2021, Quinta Câmara Criminal)
Há razões para entender se aplicar o entendimento ao caso em tela.
Como se sabe, a abertura da conta escrow só se justifica para instrumentalizar garantia de pagamento, fornecida pelo prévio titular de crédito, que pela cessão onerosa dispôs do seu domínio e propriedade.
Na prática, portanto, a trava de domicílio viabiliza e condiciona a cessão onerosa de crédito, estabelecendo direito real do cessionário sobre o recurso antecipado pelo cedente, que ainda haverá de ser pago pelo sacado devedor.
Bem assim, tem penhor o contrato, como estipula o art. 1431 do Código Civil, pela “... transferência efetiva da posse que, em garantia do débito ao credor ou a quem o represente, faz o devedor, ou alguém por ele, de uma coisa móvel, suscetível de alienação.”
A defraudação desse penhor, em nosso sentir, ocorre com a abertura dolosa de novo domicílio bancário, ardil necessário para romper o dever de proteção e confiança, violando a segurança contratual ao permitir ao sacado quitar seu compromisso em conta que não foi eleita pelos contratantes.
Daí porque é possível assinalar que a violação da trava caracteriza o disposto do art. 171, III do CPC, por defraudação “ (...) a garantia pignoratícia” previamente fornecida na conta vinculada, mecanismo de ruptura traiçoeira à confiança depositada, caminho para permitir uma espécie de “alienação não consentida ...” do crédito devido unicamente ao cessionário.
Para que o dispositivo seja levado ao conhecimento judicial, no entanto, talvez os atuais instrumentos contratuais devam ser adaptados, com previsão expressa da possibilidade no contrato mãe, como no próprio termo de cessão.
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