Publicada no último dia 13 de julho, a Lei nº 14.620/23 que regulamentou o Programa “Minha Casa, Minha Vida”, traz consigo relevante disposição para o ambiente de negócios do mercado de capitais, sobretudo no que toca a maneira como são constituídos os títulos executivos no âmbito de operações estruturadas de securitização de recebíveis – trata-se da inserção do § 4º no artigo 784 do Código de Processo Civil, que passa a ter a seguinte redação:
Art. 784. São títulos executivos extrajudiciais:
(...)
III - o documento particular assinado pelo devedor e por 2 (duas) testemunhas;
(...)
§ 4º Nos títulos executivos constituídos ou atestados por meio eletrônico, é admitida qualquer modalidade de assinatura eletrônica prevista em lei, dispensada a assinatura de testemunhas quando sua integridade for conferida por provedor de assinatura.
A alteração passa a permitir algo que já vinha sendo defendido pelo escritório FZ Advogados há muito tempo – a desnecessidade de se exigir a assinatura de duas testemunhas para que um instrumento particular tenha eficácia executiva, quando houver assinatura eletrônica atestada por autoridade certificadora participante do ICP – Brasil (Infraestrutura de Chaves Públicas do Brasil).
Importantíssimo salientar que, pela própria história da exigência mencionada, a necessidade de que duas testemunhas presenciaram a subscrição de atos particulares, tem razão de ser tão somente para que confira publicidade presumida ao negócio jurídico, sendo possível atestar a autenticidade das assinaturas apostas pelas partes contratantes[1]. Porém, a partir dos avanços tecnológicos, é plenamente possível que a assinatura eletrônica tenha publicidade total, porquanto sua autenticidade pode ser verificada por qualquer pessoa com acesso à internet.
O próprio Superior Tribunal de Justiça já reconheceu este fato em julgamento paradigmático ocorrido em 2018, sob a relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, em que foi conferida eficácia executiva a instrumento particular que, embora não subscrito por duas testemunhas, possuía assinatura eletrônica conferida e autenticada por autoridade certificadora vinculada ao ICP – Brasil:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. EXECUTIVIDADE DE CONTRATO ELETRÔNICO DE MÚTUO ASSINADO DIGITALMENTE (CRIPTOGRAFIA ASSIMÉTRICA) EM CONFORMIDADE COM A INFRAESTRUTURA DE CHAVES PÚBLICAS BRASILEIRA. TAXATIVIDADE DOS TÍTULOS EXECUTIVOS. POSSIBILIDADE, EM FACE DAS PECULIARIDADES DA CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO, DE SER EXCEPCIONADO O DISPOSTO NO ART. 585, INCISO II, DO CPC/73 (ART. 784, INCISO III, DO CPC/2015). QUANDO A EXISTÊNCIA E A HIGIDEZ DO NEGÓCIO PUDEREM SER VERIFICADAS DE OUTRAS FORMAS, QUE NÃO MEDIANTE TESTEMUNHAS, RECONHECENDO-SE EXECUTIVIDADE AO CONTRATO ELETRÔNICO. PRECEDENTES. 1. Controvérsia acerca da condição de título executivo extrajudicial de contrato eletrônico de mútuo celebrado sem a assinatura de duas testemunhas.(...) 5. A assinatura digital de contrato eletrônico tem a vocação de certificar, através de terceiro desinteressado (autoridade certificadora), que determinado usuário de certa assinatura a utilizara e, assim, está efetivamente a firmar o documento eletrônico e a garantir serem os mesmos os dados do documento assinado que estão a ser sigilosamente enviados. 6. Em face destes novos instrumentos de verificação de autenticidade e presencialidade do contratante, possível o reconhecimento da executividade dos contratos eletrônicos. 7. Caso concreto em que o executado sequer fora citado para responder a execução, oportunidade em que poderá suscitar a defesa que entenda pertinente, inclusive acerca da regularidade formal do documento eletrônico, seja em exceção de pré-executividade, seja em sede de embargos à execução. 8. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
(STJ - REsp: 1495920 DF 2014/0295300-9, Relator: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de Julgamento: 15/05/2018, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 07/06/2018)
Este posicionamento foi reiterado no ano de 2022:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. MÚTUO. CONTRATO ELETRÔNICO. ASSINATURA DIGITAL. FORÇA EXECUTIVA. PRECEDENTE. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. Esta Corte Superior possui jurisprudência no sentido de que, diante da nova realidade comercial, em que se verifica elevado grau de relações virtuais, é possível reconhecer a força executiva de contratos assinados eletronicamente, porquanto a assinatura eletrônica atesta a autenticidade do documento, certificando que o contrato foi efetivamente assinado pelo usuário daquela assinatura ( REsp 1.495.920/DF, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 15/5/2018, DJe 7/6/2018). 2. Havendo pactuação por meio de assinatura digital em contrato eletrônico, certificado por terceiro desinteressado (autoridade certificadora), é possível reconhecer a executividade do contrato. 3. Agravo interno desprovido.
(STJ - AgInt no REsp: 1978859 DF 2021/0402058-7, Data de Julgamento: 23/05/2022, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/05/2022)
Portanto, a mudança é bem vinda e encerra um debate que trazia insegurança jurídica para o setor, e está em consonância com a linha que já vinha sendo defendida pela FZ Advogados, e já reconhecido pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, em diversos processos de execuções contra cedentes, em que, muito embora não houvesse assinatura de testemunhas no “contrato-mãe”, havia assinatura eletrônica emitida por autoridade certificadora vinculada ao ICP – Brasil,
Por fim, frisamos de modo muito veemente que, conforme a própria redação da nova Lei, a autenticidade do documento será reconhecida apenas se sua integridade for conferida por provedor de assinatura (aqui entenda-se autoridade certificadora vinculada ao ICP – Brasil). Logo, se não for possível assinar o documento eletronicamente a partir de certificado digital válido, continuará sempre valendo a profilaxia jurídica, no sentido de permanecer o sistema de duas testemunhas, tal qual ocorre atualmente, sob pena de ônus jurídicos relativos à desconstituição do contrato como título executivo.
[1] TEODORO DA SILVA, João. DESNECESSIDADE DAS TESTEMUNHAS DENTRE OS REQUISITOS ESSENCIAIS DO INSTRUMENTO PÚBLICO COM EFEITO “INTER VIVOS”. Revista de Direito Imobiliário | vol. 1/1978 | p. 44 - 69 | Jan - Jun / 1978 | DTR\1978\92.
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