O ajuizamento do processo de recuperação judicial, meio pelo qual se almeja a reestruturação empresarial, é motivo dos mais diversos debates judiciais, dentre eles, a discussão quanto a sujeição dos créditos ao efeitos do processo de soerguimento e aos impedimentos deles oriundos é umas das mais corriqueiras.
O marco para a sujeição das obrigações ao processo de recuperação judicial e o reconhecimento da concursalidade é a ocorrência do fato gerador do crédito até a data do ajuizamento, como preceitua o art. 49 da LREF, salvo exceções dispostas na legislação, tal como a preservação dos direitos do credor fiduciário.
Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
Nesse sentido, a fim de resguardar o patrimônio da Recuperanda, com o intuito de que alcance condições para se recuperar, a legislação estabelece o prazo de 180 dias, podendo ser prorrogado por uma única vez, conhecido como stay period ou período de blindagem, no qual a Recuperanda não pode ter seu patrimônio como alvo de ações de execução e atos constritivos oriundos de créditos concursais.
A legislação falimentar é clara ao estabelecer a suspensão dos processos de execução e proibição da realização do atos constritivos em face da Recuperanda durante o período de blindagem:
Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica:
II - suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência;
III - proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial ou à falência.
§ 4º Na recuperação judicial, as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo perdurarão pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado do deferimento do processamento da recuperação, prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não haja concorrido com a superação do lapso temporal.
A determinação da suspensão das ações de execução e não da sua extinção é intencional, tendo em vista que a novação das obrigações sujeitas ao processo de recuperação judicial só ocorre com a aprovação do plano em assembleia geral de credores e posteriormente sua homologação, o que, ainda na fase do ajuizamento do feito, além de ser evento futuro, é completamente incerto.
Em outros termos, extinguir as ações ainda na fase inicial do processo de recuperação judicial poderia implicar em danos irreparáveis, retirando do credor a completa capacidade de recuperar o crédito, por exemplo, em um pedido de desistência do processo de recuperação judicial ou do transcurso do stay period, situações que detém a legitimidade para seguir com os meios executivos em face da Recuperanda.
Todavia, apensar da lei ser clara quanto a suspensão das execuções, não é raro encontrar manifestações da Recuperanda pugnando pela extinção dos feitos executivos, sob o argumento da sujeição do crédito ao processo de recuperação judicial e ofensa ao princípio da igualdade entre credores, o que na maioria dos casos não é acolhido pela jurisprudência:
Agravo de instrumento – Recuperação judicial – Decisão agravada que deferiu o pedido de prorrogação do stay period – Inconformismo – O prazo de prorrogação do período de suspensão das execuções individuais, do curso da prescrição das obrigações do devedor e da proibição de qualquer forma de arresto, retenção, penhora, sequestro, apreensão e constrição judicial é de 180 dias, prorrogável por mais 180 dias, uma única vez. Não há nenhuma possibilidade de dar entendimento diverso a permitir que o período se estenda por um ou mais dias após o vencimento do 360º dia de suspensão – Provimento do recurso, com o prosseguimento dos atos executórios em face da recuperanda, ora agravada. Dispositivo: Por maioria de votos, dão provimento ao recurso, vencido o Relator Sorteado, que declara. Acórdão com o 3º Juiz.
(TJSP; Agravo de Instrumento 2213591-11.2023.8.26.0000; Relator (a): Ricardo Negrão; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Especializado 1ª RAJ/7ª RAJ/9ª RAJ - 1ª Vara Regional de Competência Empresarial e de Conflitos Relacionados à Arbitragem; Data do Julgamento: 08/02/2024; Data de Registro: 09/02/2024).
Outro ponto que levanta embates judiciais são os efeitos do ajuizamento do processo de recuperação judicial em relação aos atos já praticados, tais como ordens de penhora e valores anteriormente consignados pela Devedora, sendo comum, também, o pedido de levantamento dos valores e cancelamento das ordens judiciais com o pedido de recuperação judicial, sob o argumento de aplicação dos efeitos do processamento do feito e essencialidade ao soerguimento.
No entanto, da mesma forma do alegado anteriormente, tal pleito também não encontra respaldo legal e jurisprudencial. O pedido de recuperação judicial e o seu deferimento geram efeitos ex nunc, ou seja, ou atos práticos até o pedido permanecem válidos e eficazes.
Assim, atos de penhora e valores consignados antes do ajuizamento do feito, praticados quando ainda inexistia qualquer efeito protetivo oriundo do processo de recuperação judicial, devendo se manter íntegros, considerando que são legais e legítimos.
Nesse sentido, é o fundamento da recente decisão de controle de legalidade proferida no processo de recuperação judicial n. 1001585-04.2022.8.26.0292/TJSP:
Restou clara a adoção do entendimento de que que a novação operada pela homologação do PRJ tem como efeito a extinção de todas as execuções individuais contra a própria devedora, com exceção daquelas “existentes em data anterior ao pedido de recuperação” e que, porventura já tenham sido garantidas por penhora, na medida em que, além das razões já expostas nos agravos de instrumento ns. 22472651920198260000 e 2039574-35.2019.8.26.0000, cujas ementas já foram transcritas pela administradora (v. p. 1996), as quais se reporta, o deferimento do pedido de processamento da recuperação judicial tem efeitos apenas ex nunc, não alcançando constrição previamente efetivada.
Em igual sentido é o entendimento do TJSP:
RECUPERAÇÃO JUDICIAL – EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL – PENHORA DE VALORES QUE OCORREU MUITO ANTES DO DEFERIMENTO DO PROCESSAMENTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL - EXEQUENTE QUE TEM DIREITO AO LEVANTAMENTO DO DINHEIRO – É certo que, como regra, o deferimento do processamento da recuperação judicial acarreta a suspensão da execução individual (arts. 6º e 52, Lei nº 11.101/2005). Todavia, excepcionalmente, é preciso analisar qual a fase em que o processo executivo singular se encontra. Não soa razoável nem jurídico suspender a execução individual, desprezando tudo o que nela foi praticado. Descabe conferir efeito retroativo à decisão que defere o processamento, anulando e desconsiderando todas as fases anteriores dos procedimentos executivos individuais. No caso em tela, é preciso destacar o bloqueio de dinheiro se deu em 10/09/2018. Em 20/02/2019, a exequente DITUFER pediu o levantamento dos valores penhorados. Porém, nesse mesmo dia (20/02/2019), a devedora ingressou com o pedido de recuperação judicial, manobra que não pode excluir o legítimo direito da exequente de proceder ao levantamento do dinheiro - RECURSO PROVIDO.
(TJSP; Agravo de Instrumento 2149989-85.2019.8.26.0000; Relator (a): Sérgio Shimura; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Cubatão - 4ª Vara; Data do Julgamento: 17/12/2019; Data de Registro: 18/12/2019)
AGRAVO DE INSTRUMENTO. LOCAÇÃO DE BENS MÓVEIS. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL C. C. COBRANÇA. FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. Irresignação contra o r. pronunciamento que indeferiu o pedido de desconstituição das penhoras e devolução dos valores. Cumprimento de sentença que busca o recebimento dos locativos e honorários fixados na fase de conhecimento que se originou antes de pedido de recuperação judicial. Natureza concursal que não se questiona. Execução que se operou em partes, com as impugnações às penhoras rejeitadas e, submetidas a recurso, confirmadas. Ato jurídico perfeito e acabado que não permite a desconstituição pelo deferimento da recuperação judicial da agravada, que não tem efeito retroativo. Recurso desprovido.
(TJSP; Agravo de Instrumento 2002938-94.2024.8.26.0000; Relator (a): Dimas Rubens Fonseca; Órgão Julgador: 28ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 14ª Vara Cível; Data do Julgamento: 19/03/2024; Data de Registro: 19/03/2024)
Por conseguinte, entende-se que o ajuizamento do processo de soerguimento não tem o condão de invalidar os atos e as relações jurídicas até então firmadas, sendo estas perfeitamente válidas. Ademais, a ausência de efeito retroativo no pedido de recuperação não está relacionado, somente, com os efeitos oriundos do stay period, mas também aqueles atrelados a aprovação do plano de recuperação judicial e a novação dos créditos:
Execução de título extrajudicial – Homologação do plano de recuperação judicial – Sentença de extinção, sem resolução do mérito – Liberação dos valores constritos em favor do executado – Descabimento – Bloqueio eletrônico realizado antes do pedido de recuperacional – Ausência de efeitos retroativos para atingir os atos pretéritos já consolidados – Precedentes da instância especial – Legitimidade de levantamento da importância pelo exequente – Execução definitiva lastreada em título executivo líquido, certo e exigível – Súmula n. 317 do Superior Tribunal de Justiça – Recurso provido.
(TJSP; Apelação Cível 1001397-43.2018.8.26.0068; Relator (a): César Peixoto; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro de Barueri - 6ª Vara Cível; Data do Julgamento: 17/03/2022; Data de Registro: 17/03/2022)
De acordo com o entendimento dos Tribunais, a novação dos créditos procedida em razão da aprovação do plano de recuperação judicial não atinge aqueles atos já praticados antes do pedido de recuperação judicial, tendo em vista que não estão sob os efeitos do processo, sendo considerados válidos, assim devendo serem liberados em favor da parte exequente.
No mesmo sentido é o entendimento do STJ:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. MANUTENÇÃO DA CONSTRIÇÃO DE VALORES DEPOSITADOS NOS AUTOS. DECISÃO RECORRIDA NO MESMO SENTIDO DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 83 DO STJ. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.
1. De acordo com a jurisprudência do STJ, o deferimento do pedido de recuperação judicial e a decretação de falência, possuem efeito ex nunc, ou seja, não retroagem para regular atos que lhe sejam anteriores. Incidência da Súmula n. 83 do STJ.
2. Agravo interno desprovido.
(AgInt no REsp n. 2.113.846/SP, relator Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 15/4/2024, DJe de 18/4/2024.)
Nessa senda, o efeito do ajuizado do pedido de recuperação judicial como marco para concursalidade do crédito e a sujeição deste ao processo de soerguimento, não se confunde com a validade e eficácia dos atos praticados até então, não tendo o processamento do feito recuperacional capacidade de implicar na anulação ou revogação dos atos anteriores.
Ainda, nessa toada, cabe destacar trecho ementado no acordão proferido nos autos do agravo de instrumento de nº 52997031920238217000 do TJRS, pelo qual fica reconhecido o dever do juízo da recuperação judicial em preserva aos atos jurídicos perfeitos:
A jurisprudência deste Tribunal delimitou o alcance dos arts. 6º, § 12º e 20-B, §1º, ambos da Lei nº 11.101/05, no sentido de que o Juízo da recuperação deve observar aos atos jurídicos perfeitos e, em qual fase encontra-se a execução, para análise sobre a possibilidade ou não do levantamento de valores penhorados em favor da devedora, seja na qualidade de recuperanda, seja na qualidade de quem antecipa os efeitos do deferimento do processamento da recuperação judicial. 52997031920238217000, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eliziana da Silveira Perez, Julgado em: 23-11-2023)
Inclusive, se assim não fosse, poderia se incorrer no risco de provocar o desfazimento dos atos anteriores ao pedido de recuperação judicial de modo indeterminado, considerando a inexistência de qualquer marco delimitador, gerando imenso desequilíbrio nas relações jurídicas.
Percebe-se, que aceitar que o processo de recuperação judicial pudesse revogar ou anular os atos constritivos praticados antes do pedido, seria o mesmo que admitir que qualquer ato de penhora ou valor consignado, por parte do Devedor sujeito ao processo de recuperação judicial, estaria sob condição precária, podendo ser anulado a qualquer tempo, caso ajuizado pedido de recuperação judicial.
Dessa forma, fica claro que os atos constritivos realizados antes do pedido de recuperação judicial devem ser preservados, resguardando o direito e legitimidade do credor, independente da concursalidade do crédito, considerando que os efeitos do ajuizamento do processo de recuperação judicial se projetam, unicamente, para o futuro.
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