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Validade da cláusula 'pro solvendo' nos contratos de cessão de crédito

  • Foto do escritor: Felipe Zago
    Felipe Zago
  • há 3 dias
  • 8 min de leitura

Poucos temas têm sido tão mal compreendidos e, por consequência, tão equivocadamente julgados quanto a validade da cláusula “pro solvendo” nos contratos de cessão de crédito do mercado de capitais.


Embora o arcabouço jurídico e econômico da securitização seja sólido e bem definido, ainda se observam decisões que, mesmo diante da clareza do artigo 296 do Código Civil e da regulamentação da CVM, afastam a eficácia da coobrigação do cedente como se o próprio Código Civil não incidisse sobre as operações de antecipação de recebíveis.

Esse equívoco, mais que técnico, é conceitual e gera efeitos graves, comprometendo a segurança jurídica e a funcionalidade das estruturas de FIDCs e securitizadoras.

É preciso reconhecer que o Poder Judiciário, em algumas decisões, tem falhado em compreender a lógica de alocação de riscos que sustenta essas operações, produzindo interpretações que afrontam o Código Civil, a autonomia privada e o regime normativo do mercado de capitais supervisionado pela CVM.


O presente estudo busca reafirmar, com base técnica e normativa, o que o direito positivo há muito consagra: a cláusula “pro solvendo” é legítima, necessária e juridicamente inatacável nas operações de securitização de recebíveis. Negar-lhe validade é esvaziar a essência da securitização e fragilizar um dos instrumentos mais sofisticados de financiamento da economia.


Securitização de recebíveis


A securitização de recebíveis caracteriza-se como operação financeira estruturada, na qual o originador cede direitos creditórios a entidade própria — seja um Fundo de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC), seja uma companhia Securitizadora —, que converte tais ativos em lastro para a emissão de valores mobiliários, como cotas ou debêntures, destinados ao mercado de capitais. Os montantes captados junto ao público investidor são revertidos ao cedente, a título de liquidação da cessão, viabilizando a antecipação de receitas e promovendo, simultaneamente, a dispersão do risco entre os diferentes participantes da operação.


Securitizar é mobilizar capitais de investidores, pela modalidade de transmissão obrigacional da cessão onerosa de direitos creditórios do credor deficitário, por um credor investidor superavitário, realizada pela compra negociada entre os agentes decorrentes da substituição na posição de credor a ser sub-rogada.


A atividade é regulada pela CVM (Lei 6.385/76 e Instrução CVM 356/2001), dentro da estrutura do Sistema Financeiro Nacional, garantindo transparência, auditoria e supervisão pública. Nesse contexto, a cláusula de coobrigação “pro solvendo” tem papel estrutural: ela mitiga risco de crédito, alinha interesses entre cedente e investidores e preserva o equilíbrio econômico da operação. Afastar a cláusula sob o pretexto de nulidade equivale a desestruturar o próprio alicerce que sustenta a confiança e a estabilidade do mercado de antecipação de recebíveis.


A cessão de crédito e a cláusula “Pro Solvendo”

Nos termos dos artigos 286 a 298 do Código Civil, a cessão de crédito é a transferência, pelo cedente, de sua posição creditória ao cessionário, incluindo acessórios e garantias. Em regra, a cessão é pro soluto, cabendo ao cedente apenas garantir a existência do crédito.


O artigo 296, contudo, prevê que, havendo estipulação expressa, o cedente também responde pela solvência do devedor, configurando-se a cessão pro solvendo. Nessa modalidade, estabelece-se um direito de regresso — ou coobrigação — em favor do cessionário, servindo de fundamento para a responsabilização do cedente ou de devedores solidários em caso de inadimplência. É o que dispõe o artigo 296 do Código Civil: “salvo estipulação em contrário, o cedente não responde pela solvência do devedor”, ou seja, o cedente apenas ficará incumbido do pagamento da dívida se houver previsão contratual.


A cláusula pro solvendo representa, em essência, a positivação do direito de regresso, servindo de alicerce para a responsabilização do cedente e de eventuais devedores solidários em face da inadimplência dos sacados no âmbito das cessões creditórias.

Não surpreende, portanto, que o artigo 2º, XV, da Instrução CVM nº 356/2001 — diploma que regulamentava a atuação dos FIDCs, revogado pela Instrução CVM nº 175/2022 — tenha expressamente reforçado a validade da cláusula, ao estabelecer que: “…a obrigação contratual ou qualquer outra forma de retenção substancial dos riscos de crédito do ativo adquirido pelo fundo assumida pelo cedente ou terceiro, em que os riscos de exposição à variação do fluxo de caixa do ativo permaneçam com o cedente ou terceiro”.


 A norma evidenciava, assim, que a assunção de riscos pelo cedente, seja por meio de coobrigação, recompra ou outra forma contratual equivalente, não apenas é juridicamente válida, como também constitui mecanismo legítimo de alocação e mitigação de riscos nas operações de cessão de crédito.


A jurisprudência, por sua vez, vem se consolidando na mesma direção, reconhecendo a plena licitude da cláusula de recompra quando expressamente pactuada entre as partes e respaldada pela regulamentação vigente, especialmente pela Instrução CVM nº 175/2022, que sucedeu e aperfeiçoou o regime jurídico dos FIDCs.

Embargos à execução. Contrato que regula as cessões de crédito para fundo de investimento em direitos creditórios, com Coobrigação – número 15364825 e termos aditivos anexos. direitos creditórios representados por títulos de crédito (duplicatas e cheques). impossibilidade do Douto Juízo “a quo” alterar os fundamento da sentença já proferida em sede de embargos de declaração . ocorrência de preclusão pro judicato. Fidc que não se equipara a Factoring. Cláusula de recompra que é lícita e está prevista no contrato e na Instrução Normativa 175/22 que regulamenta os FIDC. Legitimidade do devedor solidário reconhecida .(…). recurso provido, reconhecida a nulidade da sentença. ação julgada improcedente, com base no artigo 1.013, § 3º do CPC . (TJ-SP – Apelação Cível: 1020294-81.2022.8.26 .0100, Relator.: Sandra Galhardo Esteves, Data de Julgamento: 05/12/2023, 12ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 05/12/2023)

Além disso, a cláusula “pro solvendo” reafirma o princípio da autonomia privada, fortalecido pelas alterações promovidas pela Lei nº 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica) nos artigos 421 e 421-A do Código Civil. Trata-se de expressão legítima da liberdade contratual e de instrumento racional de alocação de riscos entre as partes, não configurando cláusula abusiva, nula ou viciada em consentimento.


No ordenamento jurídico brasileiro e na regulação do mercado de capitais, inexiste qualquer proibição à coobrigação do cedente ou de terceiros a ele vinculados pelo adimplemento dos direitos creditórios cedidos. Ao contrário, a própria CVM reconhece e disciplina essa possibilidade, enquanto o Código Civil confere ampla liberdade às partes para pactuá-la nos contratos de cessão.


Qualquer decisão judicial que inviabilize tal prática em operações envolvendo FIDCs ou securitizadoras impõe restrição indevida à autonomia privada e gera significativa insegurança jurídica, com reflexos que ultrapassam o campo da securitização e alcançam todo o mercado de capitais. A CVM, autoridade máxima do setor, jamais vedou a coobrigação; ao contrário, reconheceu-a como elemento essencial à adequada distribuição de riscos nessas estruturas. Ignorar essa realidade é desconsiderar a competência técnica da autarquia reguladora e criar uma insegurança que a lei jamais previu.


Sob a ótica dos cedentes, eventual supressão da coobrigação reduziria a oferta de direitos creditórios e elevaria as taxas de desconto, em razão do prêmio de risco exigido pelos investidores. O resultado seria o encarecimento do crédito e o retorno forçado a meios de captação mais onerosos e burocráticos, como o bancário.

Cumpre destacar que as cessões de crédito são firmadas de boa-fé, sob marco normativo claro, e que a coobrigação é fator determinante na precificação e na solidez das operações. Assim, decisões que desconsiderem sua validade impactam não apenas FIDCs e securitizadoras, mas também a coletividade de investidores que deles participa. Conclui-se, portanto, que a cláusula pro solvendo é legítima expressão da autonomia privada e encontra pleno respaldo no ordenamento jurídico brasileiro.


Jurisprudência


O STJ consolidou, em importante precedente, a validade da cláusula pro solvendo em contratos de cessão de crédito, a exemplo do REsp 1.726.161/SP, cujo acórdão vem sendo amplamente citado em diversos julgados. Nesse precedente, a Corte reconheceu a validade da cláusula contratual pela qual o cedente assegura a solvência do devedor originário, especialmente em operações envolvendo Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs). Confira-se a ementa:

RECURSO ESPECIAL. FUNDO DE INVESTIMENTO EM DIREITOS CREDITÓRIOS. MERCADO DE CAPITAIS. VALOR MOBILIÁRIO. DEFINIÇÃO LEGAL QUE SE AJUSTA À DINÂMICA DO MERCADO. SECURITIZAÇÃO DE RECEBÍVEIS. CESSÃO DE CRÉDITO EMPREGADO COMO LASTRO NA EMISSÃO DE TÍTULOS OU VALORES MOBILIÁRIOS. PACTUAÇÃO ACESSÓRIA DE FIANÇA. POSSIBILIDADE. CONFUSÃO ENTRE AS ATIVIDADES DESEMPENHADAS POR ESCRITÓRIOS DE FACTORING E PELOS FIDCs. DESCABIMENTO. CESSÃO DE CRÉDITO PRO SOLVENDO. VIABILIDADE. 1.(…). 2. Os Fundos de Investimento em Direito Creditório – FIDCs foram criados por deliberação do CMN, conforme Resolução n. 2.907/2001, que estabelece, no art. 1º, I, a autorização para a constituição e o funcionamento, nos termos da regulamentação a ser estabelecida pela CVM, de fundos de investimento destinados preponderantemente à aplicação em direitos creditórios e em títulos representativos desses direitos, originários de operações realizadas nos segmentos financeiro, comercial, industrial, imobiliário, de hipotecas, de arrendamento mercantil e de prestação de serviços, bem como nas demais modalidades de investimento admitidas na referida regulamentação. 3. Portanto, o FIDC, de modo diverso das atividades desempenhadas pelos escritórios de factoring, opera no mercado financeiro (vertente mercado de capitais) mediante a securitização de recebíveis, por meio da qual determinado fluxo de caixa futuro é utilizado como lastro para a emissão de valores mobiliários colocados à disposição de investidores. Consoante a legislação e a normatização infralegal de regência, um FIDC pode adquirir direitos creditórios por meio de dois atos formais: o endosso, cuja disciplina depende do título de crédito adquirido, e a cessão civil ordinária de crédito, disciplinada nos arts. 286-298 do CC, pro soluto ou pro solvendo. 4. Foi apurado pelas instâncias ordinárias que trata-se de cessão de crédito pro solvendo em que a recorrida figura como fiadora (devedora solidária, nos moldes do art. 828 do CC) na cessão de crédito realizada pela sociedade empresária de que é sócia. O art. 296 do CC estabelece que, se houver pactuação, o cedente pode ser responsável ao cessionário pela solvência do devedor. 5. Recurso especial provido. (REsp 1726161/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 06/08/2019, DJe 03/09/2019).

A jurisprudência sobre os Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs) mostra-se amplamente consolidada no reconhecimento da validade das cláusulas de coobrigação e recompra, em razão da natureza fiduciária e da lógica de mitigação de riscos que regem o mercado de capitais. Os tribunais têm reconhecido que a previsão contratual de recompra ou assunção de riscos pelo cedente não viola a cessão de crédito, mas reforça o alinhamento de interesses entre originadores e investidores.

Embora ainda em processo de consolidação, o mesmo entendimento vem sendo gradualmente estendido às companhias securitizadoras, reconhecendo-se a validade da cessão de crédito na modalidade “pro solvendo”, como demonstram os precedentes do TJ/RJ a seguir.

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE LIQUIDEZ, CERTEZA E EXIGIBILIDADE DO TÍTULO, SOB O FUNDAMENTO DE QUE A EXEQUENTE SERIA UMA EMPRESA DE FATURIZAÇÃO (“FACTORING”). (…). CONTRATO FIRMADO ENTRE AS PARTES QUE É DE CESSÃO DE CRÉDITO, SENDO A EMPRESA CESSIONÁRIA, ORA EXEQUENTE E APELANTE, UMA SECURITIZADORA, E NÃO UMA EMPRESA DE FACTORING (FATURIZADORA). TRATANDO-SE DE CONTRATO CELEBRADO POR EMPRESA SECURITIZADORA, NÃO SE CONSTATA A ALEGADA INVALIDADE DA CESSÃO DE CRÉDITO PRO SOLVENDO, UMA VEZ QUE ENCONTRA PREVISÃO NO ARTIGO 296 DO CÓDIGO CIVIL, O QUAL DISPÕE QUE “SALVO ESTIPULAÇÃO EM CONTRÁRIO, O CEDENTE NÃO RESPONDE PELA SOLVÊNCIA DO DEVEDOR”. HAVENDO EXPRESSA PREVISÃO, NO ÂMBITO DA AUTONOMIA PRIVADA DAS PARTES, NÃO HÁ INVALIDADE A SER RECONHECIDA NA REFERIDA CLÁUSULA E TAMPOUCO NO CONTRATO. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE QUE SE REJEITA. PROSSEGUIMENTO DA EXECUÇÃO QUE SE IMPÕE. SENTENÇA VERGASTADA QUE SE REFORMA . RECURSO A QUE SE DÁ PROVIMENTO. (TJ-RJ – APELAÇÃO: 01586631020218190001, Relator.: Des(a). AUGUSTO ALVES MOREIRA JUNIOR, Data de Julgamento: 13/05/2025, PRIMEIRA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 8ª CÂMARA CÍVEL), Data de Publicação: 22/05/2025).

Outros julgados de Tribunais Estaduais reforçam a validade da cláusula de coobrigação para as securitizadoras, como se observa nas decisões do TJ-SP (Apel. nº 1009466-75.2017.8.26.0011, Rel. Des. Thiago de Siqueira, j. 20.03.2019, e Apel. nº 1119940-11.2015.8.26.0100, Rel. Des. Hélio Faria, j. 10.10.2017) e do TJ-SC (Apelação nº 5001042-63.2022.8.24.0008, Rel. Des. José Carlos Carstens Köhler, j. 19.08.2025, Quarta Câmara de Direito Comercial), reconhecendo a legitimidade da cláusula pro solvendo em contratos de securitização de recebíveis.


Conclusão


A cláusula “pro solvendo” não é uma excentricidade contratual, mas um pilar jurídico e econômico da securitização de recebíveis. Negar-lhe validade é retroceder a um tempo em que o direito ignorava a complexidade do mercado e o papel civilizatório da previsibilidade jurídica. As decisões que afastam a coobrigação — sob justificativas genéricas ferem a lei, a lógica e a própria regulação estatal. É urgente que o Poder Judiciário reencontre o eixo técnico da matéria, para que o sistema volte a falar a linguagem do mercado que ele próprio pretende proteger.


Mais do que uma mera cláusula contratual, a coobrigação constitui instrumento essencial para o equilíbrio das relações obrigacionais e para a correção das assimetrias de risco inerentes às operações de cessão de crédito. É precisamente esse mecanismo que confere solidez e previsibilidade às estruturas de securitização, assegurando sua funcionalidade econômica e jurídica. Enquanto o direito insistir em desconsiderar essa realidade, permanecerá comprometendo a segurança jurídica e a eficiência do mercado de capitais, em favor de um formalismo anacrônico e dissociado da lógica econômica que sustenta tais operações.

 
 
 

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